Bruno entrou no ônibus ainda com cara de sono. Felipe estava no fundo. Logo a condução se encheria de estudantes. As conversas mal seriam ouvidas. Só o barulho insuportável das vozes sobrepujando-se umas as outras, se fazendo ouvir sobre as demais. A adolescência e sua vivacidade...
[...]
Felipe cochilava encostado à janela.
- Ei, acorda aí! – Bruno dá uma cotovelada no amigo.
- Hã?! – Felipe passa a mão no rosto e boceja.
- Nem tirou as remelas!
- Tirei, sim – passou os dedos nos cantos dos olhos – Claro que tirei...
Com todo aquele barulho (não mencionando o sacolejo característico de ônibus velho) os dois iam calados. O trajeto inteiro é assim. Muito cedo para conversas. Cedo para acordar. Cedo para o colégio.
[...]
Primeiro, segundo, terceiro tempo e, hora do intervalo. Quinze minutos e uma breve conversa.
- Vamos continuar a história? – Bruno puxa o caderno, pega a caneta e ajeita a folha.
- O que mais você escreveu? – Felipe pergunta com a boca cheia. Segurava um misto na mão direita e um suco de maracujá na outra.
- “O capitão Gregory decidiu, de pronto, voltar ao nosso planeta. Embora não houvesse mais o que fazer, navegávamos para além da Órion. Para nossa terra natal, a adorada New Earth. Se tivéssemos de morrer, que não fosse em um lugar desconhecido no espaço. Que nossos túmulos fossem cavados em solo pátrio!
Ainda pensava em nosso funeral quando o capitão entra com uma expressão pálida. O combustível no fm. A tripulação definhando. A gripe que atingia os subordinados era mortal. Essas eram as noticias de última hora... da última hora...”.
- Que triste, Bruno! Não há um antidoto, uma vacina?
- Não. Olha só, Felipe – diz gesticulando com as mãos, característica sua quando queria explicar algo – Imagina um grupo de exploradores enviados a uma floresta tropical da qual não soubessem mais do que aprenderam em livros. Haveria uma grande chance deles contraírem uma doença causada por algum mosquito, ou coisa parecida.
- Foi o que aconteceu?
-É... foi algo semelhante...Agora, você me deixa continuar?
- Por favor.
- “Restavam apenas os pilotos, eu, e o próprio capitão, que já apresentava sinais de cansaço”.
- “O capitão tinha uma resistência imunológica impressionante, resultado de sua origem genética”.
- O que a genética tem a ver com isso?
- Sério! Por que ele resistiria tanto, se não tivesse uma predisposição genética privilegiada?
- É verdade... – Bruno fez uma observação ao lado da página digitada.
- Pois, sim, continue!
- “Eu, como subtenente, esforçava-me ao máximo para me manter são, mental e fisicamente. Apenas cinco horas de casa. O capitão reclamando e pressionando os pilotos. As turbinas foram ligadas. Estávamos a muitos quilômetros por hora. Milhares? Anos-luz? Minha cabeça dói e o único som que chega aos meus ouvidos é o dos motores”.
- Propulsores.
- O que?
- São propulsores. É um tipo de engenho que dá movimento a certas máquinas. Foi o que deu impulso à nave. Eles estavam em alta velocidade, certo? Tem que imaginar como deve ser o suporte do motor.
- Boa sacada... Essa palavra fica melhor – diz rabiscando ao lado – Continuando.
”Os gases em volta de New Earth formavam aureolas prateadas. Quisera eu não ter sido convocado para viagem da minha morte... Não estaria delirando com imagens do meu planeta... o capitão me acordou ainda há pouco. Disse que estávamos a alguns quilômetros. Comecei a rezar para que chegássemos logo e que nada nos parasse. Em momentos de desespero, tudo o que podemos nos apegar é ao sobrenatural. Um milagre!
Avistei os campos verdes, o azul esverdeado dos lagos. Depois as casas, as lindas construções do Ministério da Tecnologia e Robótica Avançada. O que me fez lembrar: meu braço esquerdo fora refeito ali. Muitas horas de recuperação e adaptação. Recordações dolorosas servindo ao meu país, sendo um exemplo... de que mesmo? De covardia, suponho. Tantas vidas perdidas naquela guerra inútil. Eles não citam isso, os livros de História. Os rebeldes jogando granada,os robôs revidando. Os corpos em decomposição. Corpos humanos. Por que tive que viver para ver isso? Por que não morri no percurso? Existe um propósito eu estar vivo? Humanos são tão delicados, vivem pouco. Ao olhar meu braço não-robótico,dou-me conta de que sou um ser artificial,ou um simples meio-humano. Esse braço é meu. Ainda vivo”.
Toca o sinal para o fim do intervalo. Os meninos marcam para outro dia.