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A adaptação de Zack Snyder e sua equipe

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O que nos importa ao estudar o filme é a sua concepção artístico-criativa. Poderíamos pensar que a cena inicial da graphic novel daria uma boa entrada, com os quadros em zoom, da calçada manchada de sangue ao apartamento do Comediante. Zack pensou diferente, a cena inicial seria Comediante assistindo à um noticiário. Um homem vestindo uma espécie de roupa de super-herói arrombaria a porta, e as duas figuras começariam a lutar. O que, porventura, passa despercebida é a música ao fundo. Unforgettable(Nat King Cole). Perceptível apenas ao leitor atento. Essa música é a mesma do comercial da loção pós-barba Nostalgia1 (financiado por Veid). Era Veid o assassino. O relógio do Juiz Final, é mostrado no noticiário que Comediante assisti, cientistas o mostram.
Em nenhum momento Alan deixa claro que aquele seja o relógio do Juízo. Em todas as edições ele apenas aparece como numa contagem regressiva. O sangue escorrendo, e cobrindo o relógio na última edição. Os ponteiros alcançando a meia-noite, a hora derradeira. O relógio, no filme, simboliza a contagem regressiva para Terceira Guerra Mundial. Só depois dessa primeira cena é que o expectador pode ver os créditos, nome do produtor, do diretor,etc. Mas, diferentemente dos filmes convencionais, a entrada dos créditos vem acompanhada de uma música. The Times They Are A-Changin’, cantada por Bob Dylan. A letra se mistura com as cenas do passado:

Venham pessoal/Por onde quer que andem/e admitam que as águas/á sua volta aumentaram/E aceitem que logo/Estarão cobertos até os ossos/Se seu tempo para você/Vale a pena ser salvo/Então é melhor começar a nadar/Ou irá se afundar como uma pedra/Pois os tempos estão mudando '2.

Cenas que, antes nos foram apresentadas em Sob o Capuz3, são mescladas com momentos importantes da história: os homens-minuto posando para um fotógrafo, o menino Kovacs (o Rorschach), em frente ao quarto de sua mãe, enquanto esta, em seu trabalho, recebia homens4; e, a mãe de Lauren,Sally,discutindo com o seu marido por causa do Comediante. Porém, o mais interessante foi a forma com que as músicas foram embutidas no filme, significando várias coisas em uma só. Bob Dylan é citado por Moore no final da edição um. O nome do capítulo um é A meio-noite,todos os agente, e a citação é esta: “A meio-noite,todos os agente e super-humanos saem e prendem qualquer um que saiba mais do que eles”. Quem viveu na década de oitenta deve lembrar que as letras das músicas de Bob Dylan continham um protesto5 político. The Times They Are A-Changin’exemplifica o que, naquele tempo Moore e Gibbons fizeram: Venham, escritores e críticos/Aqueles que profetizam com sua caneta/E mantenham seus olhos abertos/A chance não virá novamente 6.
Outro aspecto dessa introdução ao filme, pelas palavras de Cantanhêde7, foi
a forma utilizada para apresentar os antigos Minutemen, seus feitos e posteriores envolvimentos históricos foi extremamente inteligente. O Comediante matando Kennedy, e não Lee Harvey? Outros eventos que me marcaram foram a execução dos "hippies" (A menina que colocou a flor no fuzil partiu corações, mesmo que sua morte não tenha sido mostrada...), o Traça sendo levado ao hospício e o beijo de Sillhouette e e sua namorada.

Pensando-se bem, nada disso aconteceu na graphic novel, mas poderia ter ocorrido. Ismael Xavier defende a ideia de que “a adaptação deve dialogar não só com o texto original, mas também com seu contexto, [inclusive] atualizando o livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores neles expressos” (2003:62).

O filme de Snyder foi o resultado desse diálogo. Sem quebrar os limites que a obra lhe impôs, ele a tornou atual. Os movimentos de câmera, do lento para o rápido, nas lutas; lembra Matrix. A cor florescente do Dr. Manhattan nos dá a ideia de algo perigoso, radioativo, separado. O azul do Manhattan foi intensificado. As cenas, ditas “fortes”, não foram poupadas, a faixa etária do filme é de dezoito anos ou mais. E não há nada de errado nisso, Watchmen é um “quadrinho para adultos”.
A música seguinte introduz a cena do enterro do Comediante. E, a câmera aparece no alto, na entrada do cemitério, é quase noite. A melodia é The Sound Of Silence,cantada por Simon & Garfunkel: “Olá,escuridão, minha velha amiga,/Eu vim para conversar com você novamente,/Porque uma visão que se aproxima suavemente,/Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo,/E a visão que foi plantada em meu cérebro/Ainda permanece/Entre o som do silêncio”8.A música fala sobre o silêncio caracterizado pelas pessoas que não dão ouvidos ao que está a sua volta, combina com a personagem. Até onde sabemos, o Comediante era uma personagem sem muito pudor, mas que, nas palavras de Rorschach, “ele entendia”. Ele fez de si mesmo paródia da sociedade. No entanto, a letra da música pode ser interpretada de outra forma, na qual a escuridão e o silêncio significariam a morte da personagem, e “a visão que foi plantada em seu cérebro”,muito provavelmente, estivesse ligada a recente descoberta do plano de Veid.
Ride of the Valkyries (Budapest Symphony Orchestra) é tocada sob a figura monstruosa9do Dr. Manhattan no campo de batalha. A música começa em um crescente.
Uma das modificações feitas foi a cena do ataque a Veid. Na história em quadrinhos acontece em um shopping, e somente uma pessoa morre, a sua secretária. No filme, o meliante surge de um elevador, atira em vários sócios de Veid, e não só em sua secretária. A cena se dá em lances de câmera lenta para que o expectador veja os esquivos que Veid faz das balas. Outra mudança que me deixou a pensar “Não teria sido melhor ter mantido a versão original?” foi a cena do sequestrador que Rorschach encontra. Enquanto, na HQ, o relato “o impacto percorreu o meu braço. Jato morno no peito,como torneira de água quente” se referia a Rorschach erguendo um facão para matar os cachorros; no filme, esse comentário fica para a parte em que ele mata o sequestrador. Na película, com a ajuda de um facão. Na versão de Moore, ele apenas o amarra e incendeia a casa. E sua fala, no filme, depois de abater o sequestrador “Homens são presos. Animais são abatidos”deixa clara a
visão de quem o concebeu assim:: quem comete tal atrocidade é um animal, não um ser humano. A versão ficou bem rorschachiana.
Houve uma troca na música que Lauren e Daniel ouvem na nave, Archie. You’re My Thrill (Billie Holiday) casava com o quadro em que o Coruja e Espectral tem relações sexuais, após salvarem pessoas de um incêndio. Na versão de Zack, a música muda para Hallelujah (Leonard Cohen), a qual diz: “Eu costumava viver sozinho antes de conhecer você./Eu vi sua bandeira no arco de mármore/O amor não é uma marcha vitoriosa/É um frio e triste aleluia10”. Todas as estrofes da música terminam com um“triste aleluia”. Simboliza, mesmo que superficialmente, um “choro” de alegria por finalmente, encontrar alguém depois de uma vida solitária.
Adaptaram o momento epifânico de Lauren,em Marte. Nos quadrinhos ela acaba lembrando-se do passado ao tentar convencer John a salvar a humanidade. Em Watchmen – o filme, ela volta ao passado quando John toca a sua fronte, para não perderem tempo filosofando sobre a escuridão da existência humana, e quão abissal ela pode ser; viu-se a necessidade de encurtar o percurso até a epifania. O passado passa em flash-backs.
Aproximando-se do fim da narrativa filmíca, Rorschach e Daniel se aproximam do refúgio de Veid na Antártida ao som de All Along The Watchtower,letra de Bob Dylan,cantada por Jimi Hendrix. Nada mais conveniente, já que a citação final da edição dez era parte dessa música: “Lá fora ,na distância fria,/Um gato selvagem rosnou,/Dois cavaleiros estavam se aproximando/E o vento começou a uivar11”. Se analisássemos ao pé da letra, o “gato selvagem” seria o lince clonado de Veid; os dois cavaleiros, Rorschach e Daniel, e a distância fria, a Antártida. Mas, há algo encoberto na letra dessa música. Nos primórdios, o rock foi um estilo musical conhecido pelo seu caráter reacionário. Era cool protestar em letras de músicas de rock, eram as mais ouvidas. Através dessa letra, Moore quis nos revelar algo vedado. Nas estrofes:

Homens de negócio, eles bebem meu vinho,/Os homens do arado cavam minha terra,/Nenhum com um nível em suas mentes,/Ninguém fora deste mundo./Nenhuma razão para estar excitado,/O ladrão que falou amavelmente,/Há muitos aqui entre nós,/Que pensam que a vida é mais uma piada,/Mas você e eu, nós passamos por isso,/E este não é nosso destino,/Então vamos parar de falar hipocritamente.

Ele cai em uma constante de seus textos, a sátira velada. A ironia é que a letra fala de pessoas presas numa Torre e “Tudo ao longo da torre,/Os príncipes mantiveram a vista”. O termo “príncipe” era usado para um governante. Havia repressão, ou medo em se falar certas coisas na década de oitenta? Possivelmente, sim.
Duas transformações que, como leitora, considerei quase inaceitáveis para o nível de compreensão da graphic novel foi o fato de Daniel ter presenciado a morte de Rorschach, quando este foi desintegrado pelo Dr.Manhattan. Após isso, Daniel volta e agride Veid, que não reage, e saí com Lauren. Ambos lançam um olhar de desprezo para Veid. Mas, esta foi uma modificação leve, sendo que, talvez, na concepção dos produtores, fosse necessário mostrar o Coruja como um defensor da justiça. E, dar a ele a chance de não “compactuar passivamente” com o plano de Veid. O segundo ponto modificado foi o final. De um monstro clonado para uma bomba. O que, no fim, causou o mesmo resultado: a união dos países em guerra. Só que, provocou a união por medo, não por solidariedade. E a comoção mundial que foi efeito do surgimento de um monstro, o qual pensaram ser um extraterrestre? “Vamos lutar em prol de um objetivo em comum”. O Dr. Manhattan? Penso que, o que Zack Snyder e sua equipe fizeram foi produto de suas interpretações da Guerra Fria. Do conflito armado, da ameaça nuclear, que de fato, existiu na época. “Uma bomba” seria a melhor solução, porque provocaria reflexões sobre ogivas nucleares e o fim da paz no mundo. Segundo Maria Eugênia “um filme que nasce de um romance é um signo desse romance, que é, por sua vez, o objeto do signo, cujo Interpretante será o efeito que o signo produzirá nos espectadores ou intérpretes desse signo12”. O signo provindo de um romance que se converte em uma produção cinematográfica provém da interpretação de quem os produziu, o qual pode tanto separá-lo do original, como dar a ele uma visão atual dos eventos por ele abordados.


Referências:

ADAN,Melhen. Geografia: O quadro político e econômico do mundo atual. 3ª ed.São Paulo: Moderna,1994.

CURADO, Maria Eugênia. Literatura e cinema: adaptação, tradução, diálogo, correspondência ou transformação? http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/temporisacao/article/view/18/25. Acessado em 30 de Agosto de 2010.

CANTANHÊDE,Emanuel. Após Vigiar. http://kaosmics.blogspot.com/2009/03/apos-vigiar.htm. Acessado em 29 de Agosto de 2010.

REY, Marcos. O roteirista profissional tv e cinema. São Paulo: Ática, 1989.

RODRIGUES,Flavio Luis Freire; e ZANINELLI, Renata. Literatura e adaptação cinematográfica: diferntes linguagues,diferentes leituras.http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/reihm/article/viewFile/580/580. Acessado em 30 de Agosto de 2010.

XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

WATCHMEN-O FILME. Disco 1: Direção de Zack Snyder. Produção Paramore e Warner Bros./Legendary Pictures ,2009. 2 DVD´s (162 min.).
1Na graphic novel.
2Come gather 'round people/ Wherever you roam/And admit that the waters/Around you have grown/And accept it that soon/You'll be drenched to the bone./If your time to you/Is worth savin'/Then you better start swimmin'/Or you'll sink like a stone/For the times they are a-changin
3Espécie de “extra” das edições de Watchmen, em que a personagem Hollis Mason (o primeiro Coruja) conta a sua história,assim como parte de sua vida como vigilante.
4Quem leu saberá que a mãe de Kovacs, Rorschach, era uma prostituta e que repercussão os maus-tratos dela causaram a ele.
5As apresentações desse cantor, assim como a sua música, é proibida na China.
6Come writers and critics/ Who prophesize with your pen/And keep your eyes wide/The chance won't come again
7Formado em História pela Unisinos e ávido leitor de histórias em quadrinhos.
8Hello darkness, my old friend,/I've come to talk with you again,/Because a vision softly creeping,/Left its seeds while I was sleeping,/And the vision that was planted in my brain/Still remains/Within the sound of silence.
9No campo de batalha ele aparecia como um gigante, amedrontando os adversários.
10I used to live alone before I knew you/I’ve seen your flag on the Marble Arch/Love is not a victory march/It’s a cold and it’s a broken hallelujah
11Outside in the cold distance/A wild cat did growl/Two riders were approaching/And the wind began to howl
12Em seu artigo Literatura e Cinema: adaptação, tradução, diálogo, correspondência ou transformação?

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